Depois que o mundo acabou

Alex Xavier
Discórdia
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4 min readMar 23, 2022

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A última vez em que o Discórdia montou uma mesinha para vender seus produtos foi em 14 de dezembro de 2019, na Feira de Zines e Pequenas Editoras da Casa das Rosas. Naquele ano, participamos de vários eventos parecidos e já havíamos nos apegado às trocas de ideias com outros expositores e aprendido a chamar a atenção do público — mesmo quando não compravam algo, era gostoso perceber como ficavam curiosos com nossas criações. Se pudéssemos viver só desses momentos, já seríamos felizes.

Então, veio a pandemia.

No último sábado, participamos do nosso primeiro evento presencial em mais de dois anos, a festa Atômica, organizada no NIÁ — Núcleo de Intervenções Artísticas, na Vila Clementino, em São Paulo. Ainda de máscaras — pois não deveriam ser os políticos, mas os cientistas, a decretar o fim de uma crise sanitária de escala global. Poucos expositores, talvez ninguém aparecesse, quase certo de que não venderíamos nem um adesivinho. Tudo bem. Tínhamos uma abstinência danada de estender uma toalha e espalhar os nossos livros e zines.

Na casa que nos recebeu, ocupamos um canto bem na entrada, uma área mais aberta. A minifeira improvisou um altar em duas portas de escritório deitadas sobre cavaletes. Retomamos o ritual de pensar a disposição de cada item, como um artista plástico pintando uma tela. Em pés, os livros ficaram mais atrás. Zines menores, no meio. As artes mais convidativas, bem à mostra. Tudo ao alcance das mãos dos frequentadores, para todos serem instigados a mexer, abrir, revirar, sentir o nosso trabalho.

Como era mesmo? “Chega mais, toca em tudo, veja com as mãos, tira mesmo do plástico, está aí para bagunçar mesmo”. Aos poucos, recordamos as palavras-chave do mercado de publicações independentes, ainda que, às vezes, elas saíssem truncadas de nossas bocas cobertas, depois de uma eternidade evitando aproximação, contato, manuseio e exposição desnecessária. E não é que as pessoas apareceram? E pararam na nossa frente. E se interessaram pelo que fazíamos. E, vejam só, até compraram. Só vendo o comprovante do PIX para acreditar. Estávamos mesmo de volta às feirinhas!

Então, um dos clientes resolveu tirar uma selfie. E se apoiou em uma pintura abstrata gigante, recém-criada pela dona do lugar. Pendurada em uma viga que atravessava o salão, a tela de tecido não resistiu ao peso do corpo do desavisado e rasgou nos pregos que a prendiam. Uns cinco metros de arte, tudo ao chão. Ninguém sabia como agir diante de tamanha destruição. Só quem nunca fez nada criativo na vida não sentiu uma pontada no coração ao ver a artista plástica diante sua obra-prima, confundida com um pano de chão qualquer.

Nós, expositores, tentamos ajudá-la a arrumar aquele cenário caótico. Depois seguimos com a feirinha, fingindo que estava tudo normal. Logo, o mesmo sujeito que havia mergulhado sem dó na pintura aproximou-se de nossas mesas de porta de escritório equilibradas sobre cavaletes. Seguramos a respiração e unimos nossos pensamentos como em uma corrente: “não se aproxime, não toque em nada, tire as mãos, deixa tudo como está, sem bagunça, por favor”. O medo voltou. Mas, no fim, deu tudo certo e a arte venceu de novo.

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Alex Xavier
Discórdia

Jornalista e escritor. Mas queria ser escritor e jornalista. Autor dos livros O teatro da rotina e Não vai dar tempo (ambos da editora Patuá)