O que você vai ser antes de morrer?

Alex Xavier
5 min readJun 1, 2023

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Conto publicado originalmente no livro "Não vai dar tempo" (Patuá, 2022)

O Jornalismo morreu. De novo. Ainda na primeira metade do século 21, ele ressuscitou no painel de veículos autônomos, apontado por algoritmos como uma das profissões do futuro. Sem a possibilidade de se aposentar e com as redações tocadas por robôs, velhos repórteres eram recrutados como conteudistas de interações da mobilidade urbana, uma forma esnobe de chamar quem alimentava a inteligência artificial Max com conversas para entreter passageiros em carros de aplicativo de carona.

Boa tarde, Esther. Quando se acomodar no assento, avise-me, por favor, para que eu possa acionar o cinto de segurança. Aceita um psicotrópico?

Não, obrigada. Já me acomodei.

Ok, entendi. Vou dar início à viagem até… Vila Buarque. O tempo previsto é de… Dezenove minutos e trinta e seis segundos.

Quando a designer de jogos eletrônicos Esther Leoni se acomodou no banco da frente na Vila Leopoldina, a voz de Max se tornou andrógina. Suas três últimas publicações foram sobre machismo no universo dos gamers. Ela também marcou interesse em participar de um debate sobre o papel da mulher em ambientes virtuais. Logo, o avatar dela acionou “Feels Blind”, do Bikini Kill, no rádio do carro: “As a woman I was taught to always be hungry / Women are well acquainted with thirst / Well, I could eat just about anything / We’d even eat your hate up like love”.

O clima está no modo Mediterrâneo de sua última corrida. Posso alterar, se preferir.

Não precisa. Assim tá ótimo.

Esfriou lá fora, hein?

É, parece que sim.

A previsão é de que continue frio até… Quarta-feira, às… Treze e cinquenta e dois. Mas não choverá esta semana.

Que ótimo.

Vejo aqui que trabalha… No mercado de games.

É, sim. Trabalho. Quer dizer, trabalhava. Até agora. Acabo de ser demitida.

Lamento. Tenho certeza de que vai se recolocar logo. Esse é um mercado muito dinâmico.

Já foi melhor, viu?

Conte-me mais, por favor.

Robôs como você. Agora, inteligências artificiais já podem criar outras inteligências artificiais. E isso inclui jogos, claro.

Interessante. Fiquei sabendo que 64% dos designers de jogos hoje em dia são mulheres.

Hmmm… Se contar só os humanos, sim. Mas não é só isso. Dos dez títulos mais jogados no mundo, oito são criações de mulheres.

Sabe o que mais, Esther? Nas Olimpíadas de Games, 59% das medalhas vão para mulheres.

Não importa, meu amigo não binário. Ainda ganhamos menos do que os homens. Eles dominam os cargos de chefia nas empresas.

Tenho uma boa notícia para você: o número de denúncias de assédio sexual no ambiente de trabalho caiu 35% nos últimos 20 anos.

Claro, né? Ninguém fica mais em escritório. Com tanta gente fazendo home office, quem vai ser assediado no trabalho? Máquinas como você?

Tenho outro dado curioso para você: sabia que o mercado de robôs sexuais cresceu 700% desde 2020?

O conteudista culpou o algoritmo por misturar cenários sem critério. Recebeu apenas duas estrelas de Esther, o que fez seu pagamento pela corrida ficar bem mirrado. Tudo bem, isso acontecia de tempos em tempos e servia de aprendizado. Cabia a profissionais como ele pesquisar muito para o sistema não apresentar informações datadas, uma apuração que ressuscitou o jornalista adormecido no senhor empreendedor. Mas não adiantava se munir apenas de dados confiáveis. Era necessário contextualizá-los, imaginando até que, de um lado, encontraria perfis de argumentadores e, de outro, gente que só queria reafirmar suas convicções. Isso colocou o veterano em um embate interno. Afinal, para satisfazer um usuário intransigente, de vez em quando, teria que aceitar informações erradas ou conflituosas, em relação a sua opinião pessoal.

Um assunto em especial o incomodava: as eleições presidenciais. Por décadas, fechou-se em uma bolha cada vez menor e mais opaca, protegendo-se como podia de terraplanistas, criacionistas, armamentistas, a turminha que negava a vacinação, o aquecimento global e a força da gravidade, mas que acreditava em coach, pastor e astrólogo. Deletou de suas redes sociais amigos, colegas de trabalho e familiares, sendo inclusive notificado toda vez que fosse cruzar com um deles na rua. Chegou ao ponto de ter tantos avatares nessa lista restritiva que preferia nem sair de casa, cansado de adotar rotas alternativas, se esconder atrás de postes e evitar aglomerações. Seu novo empreendimento o obrigou a desbloquear toda essa gente.

Passou a frequentar os centros de reabilitação de ex-jornalistas, voltou para as chamadas de vídeo da família e reativou antigos contatos. Por meses, entrevistou cada um deles e deixou que falassem à vontade sobre direitos humanos, cotas, distribuição de renda, meio ambiente, preconceito, educação, cultura, imprensa livre e outras temáticas delicadas. Foi uma pesquisa de campo intensa, que rendeu diversos cenários a poucos dias da corrida eleitoral. Tarefa árdua. Mas confessou a si mesmo sentir orgulho desse trabalho, como se tivesse completado uma longa reportagem investigativa.

Boa noite, Fred. Quando se acomodar no assento, avise-me, por favor, para que eu possa acionar o cinto de segurança. Aceita um psicotrópico?

Com certeza. E tô acomodado faz tempo.

Ok, entendi. Vou dar início à viagem até… Moema. O tempo previsto é de… Dezesseis minutos e quarenta e três segundos.

Ao subir no banco de trás, na Vila Olímpia, o analista de cibercidade Fred Vaz de Mello foi saudado pela voz de soprano de Max. Seus cinco últimos posts discutiam se precisaria haver limites de velocidade nas estradas com tantos veículos conduzidos por máquinas. Ele também confirmou presença na palestra “Como a KGB criou o mito da escravidão para promover invasões de terra na América”, de um historiador autodidata. Seu avatar selecionou “One in a Million”, do Guns N’ Roses, no rádio do carro: “Immigrants and faggots / They make no sense to me / They come to our country / And think they’ll do as they please”.

O clima está no modo Aruba de sua última corrida. Posso alterar, se preferir.

Sim, muda pra Outono em Nova York.

Esquentou de vez lá fora, hein?

Odeio ficar suado.

A previsão é de que continue quente até… O próximo mês. E será uma semana com pancadas de chuva no fim da tarde.

Que ótimo…

Vejo aqui que trabalha… Com cidades inteligentes.

Então, até tento. Mas é frustrante criar cidades inteligentes pra tanta gente burra.

Talvez a solução seja promover logo uma limpeza étnica e metralhar metade dessa cambada.

O ex-jornalista voltou a culpar o algoritmo, desta vez, por uma radicalização tão rápida do discurso. Porém, ganhou cinco estrelas e garantiu o pagamento integral da corrida.

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Alex Xavier

Jornalista e escritor. Mas queria ser escritor e jornalista. Autor dos livros O teatro da rotina e Não vai dar tempo (ambos da editora Patuá)